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Histórias de bela tristeza, por Elena Brugioni

Conheci pessoalmente Lucílio Manjate em novembro de 2008 aquando da minha primeira ida a Moçambique, numa Maputo chuvosa e abafada em véspera de eleições. Lembro-me com muito gosto de uma interessante e demorada conversa, acompanhada por várias Laurentinas e outras tantas gargalhadas, na esplanada da AEMO (Associação dos Escritores Moçambicanos), onde com o Lucílio conversei longamente sobre literatura moçambicana, ouvindo suas opiniões em torno de projetos, inquietações e ideias que marcavam os jovens escritores moçambicanos que dinamizavam a AEMO, procurando nos caminhos da escrita um rumo para o futuro.

Desde aquela primeira conversa, outros encontros seguiram-se ao longo dos anos; o mais recente em outubro de 2015 em Portugal, onde partilhamos uma bela mesa-redonda por ocasião do Congresso de Comemoração dos 40 anos da Independência de Moçambique, na Universidade de Lisboa. Nesta última ocasião, enquanto ouvia a fala do colega e escritor, cuja obra literária tinha vindo a acompanhar ao longo dos anos, apercebi-me de como o jovem que conhecera naquela tarde de novembro em Maputo tinha-se tornado um crítico fino e engajado cujas reflexões em torno da nova geração de escritores moçambicanos — sobretudo a propósito do recente trabalho por ele organizado, Antologia Inédita – Outras vozes de Moçambique (Alcance, 2014) — despertaram um intenso debate, dando assim um contributo significativo para a homenagem que Moçambique e a sua literatura mereciam naquele evento.

Ocorreu-me contar aqui a breve história do meu encontro com o Lucílio Manjate pois esta parece-me corresponder ao próprio percurso que o escritor tem vindo a apresentar ao público. Um trajeto literário que vem ganhando cada vez mais maturidade, fôlego e engajamento, oferecendo ao leitor o encantamento que se espera das histórias que, como se lê neste Barcolino, nos levam ao mundo perdido e imaginado da infância, “o tom da memória e do sonho” (p. 34). Aliás, A triste história de Barcolino, o homem que não sabia morrer, obra inédita lançada no Brasil pela Editora Kapulana, é um livro que, por inúmeras razões, despertará o interesse de quem procura outros enredos e imaginários, outras formas de ver, escrever e lembrar.

No entanto, devido aos ossos do ofício, isto é aos rumos que as minhas pesquisas sobre a literatura moçambicana vão seguindo, devo confessar que o que mais me intrigou nesta história de “bela tristeza” foi, para além da habilidade e da cortesia da sua prosa, sem sombra de dúvida o lugar da sua ambientação. A Costa do Sol e o Bairro dos Pescadores, onde a cidade de Maputo se junta às águas mansas e densas de mistério do Índico, são os cenários de um enredo todo centrado à volta de Barcolino, “engenhoso pescador”, “homem mais do mar de que da terra” e “conhecedor da fúria de Adamastor” cuja história, atravessando bares, bairros e quintais, transtorna os moradores e confunde os turistas. Pano de fundo insólito construído em torno de um imaginário marítimo que dentro da literatura moçambicana institui-se habitualmente como território sobretudo poético, espacialmente deslocado no norte do país — na Ilha de Moçambique, sobretudo — e que o autor resgata e habita de sonhos que se tornam histórias e de um quotidiano convivial — feito também de lazeres e excessos — num desencontro entre vivência e imaginação de indubitável originalidade narrativa. Este mesmo Índico que vem ganhando cada vez mais peso nas obras dos prosadores moçambicanos de diversas gerações encerra e (re)significa os mistérios e as contradições da triste história de Barcolino, numa viagem inesperada entre o mar e a terra onde a imaginação transforma os sonhos em realidade, levando o leitor pelas partes incertas de outras existências.

São Paulo, 2 fevereiro de 2017.

Elena Brugioni – Professora de Literaturas Africanas, Depto. de Teoria Literária, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Citar como:
BRUGIONI, Elena. “Histórias de bela tristeza”. Prefácio in: MANJATE, Lucílio. A triste história de Barcolino, o homem que não sabia morrer. São Paulo: Kapulana, 2017. (Série Vozes da África)