Das margens: poesia, ainda – por Cíntia Machado de Campos Almeida
Na margem, o reencontro: nós e ‘camarada Patraka’ mais uma vez embaraçados na entremeadura dos versos entoados pela velha voz. Voz que ainda ressoa da rua de Lidemburgo, no subúrbio de Maputo, capital moçambicana. Velha voz, porém provavelmente nova para o leitor brasileiro que, pelo advento da série “Vozes da África”, da Editora Kapulana, poderá, enfim, (re)encontrar-se com significativos nomes da Literatura Africana de Língua Portuguesa.
O ‘Patraka’ a quem nos referimos, com permitido afeto, nasceu Luís Carlos Patraquim, em 26 de março de 1953 na antiga – e à época, ainda colonial – Lourenço Marques, hoje Maputo. Iniciou seus laços com as letras pela carreira jornalística na década de 1970, arriscando-se às searas literárias a partir do ano de 1980, quando da publicação de seu primeiro livro de poesias, Monção.
Para quem ainda não conhece seu (re)nome, uma advertência necessária: trata-se de um profano! Mas o leitor que agora, provavelmente, arregala os olhos, não precisa deixar-se arrebatar pelo espanto. Isso porque, ao conhecermos a obra poética de Patraquim, percebemos que uma das marcas fundamentais de sua escrita é promover profanações com sua poesia, segundo o conceito de ‘profanação’ defendido por Giorgio Agamben1. Para o filósofo italiano, ‘profanar’ significa ‘reusar’, restituir ao uso comum algo previamente sacralizado. Constituindo, pois, uma forma de libertação e de recriação da coisa profanada. Assim, percebemos que Patraquim profana a literatura moçambicana na medida em que a reinventa.
Em 1980, o poeta trouxe a público seu primeiro livro: Monção, inaugurando um novo lirismo intimista na literatura de seu país, o que veio a alicerçar a chamada ‘geração de 80’. O livro de estreia causou grande alarde: questionou-se a funcionalidade daquele estilo subjetivo de escrita num país em que a independência nacional havia sido proclamada apenas cinco anos antes e que experimentava o descompasso de uma casa nacional recém erguida, ainda em processo de construção. Afinal, para que – e para quem – escrevia Luís Carlos Patraquim?
Desde 1980 até a presente publicação, o poeta inteirou nove livros de poesia – que, em termos cronológicos, equivalem a quase quatro décadas de um exercício lírico espaçado, porém contínuo. Até O cão na margem (2017), constituem os rastros de seu legado poético as obras Monção (1980), A inadiável viagem (1985), Vinte e tal novas formulações e uma elegia carnívora (1991), Mariscando luas (1992), Lidemburgo blues (1997), O osso côncavo e outros poemas (2004), Pneuma (2009) e O escuro anterior (2011).
Na primeira fase, que se estende entre os anos de 1980 a 1991, ao cumprir uma jornada ainda bastante arraigada às paisagens exteriores, Patraquim reencontra-se com sua terra, ao sul da África. Na segunda fase, constituída pelos livros publicados entre 1992 e 2004, Patraquim reencontra-se com Maputo, seu subúrbio, a inesquecível rua de Lidemburgo, ainda – e para sempre – a abrigar a casa original, bem como as memórias que lá ainda teimavam em habitar.
Consideramos como terceira e – até a publicação de O cão na margem – última fase da poesia patraquimiana, a que se prenuncia pelos, então inéditos, versos de O osso côncavo e outros poemas (2004), e que se consolida com os dois últimos livros publicados pelo poeta até 2011. Eis aí um ciclo que nomeamos de intrapoética, certamente a mais interiorizada, hermética e fragmentada de todas as fases. No encalço das origens da própria poesia, o poeta reencontrou as suas: havia ‘aindas’ para além do breu.
Como se não bastasse profanar a literatura com suas ‘vagamundagens’ poéticas, Patraquim, desta vez, profana também o leitor, na medida em que nos encaminha para a margem da poesia. Com O cão na margem, o poeta evidencia que margear é também uma forma de profanar, pois é nela que o texto nos mostra que a linha não basta. É onde a página se transforma – trans-borda – em um não caber.
Seria o início de uma nova fase de sua poesia? Quem o sabe? Início ou não, toda margem pressupõe uma continuação. Aceitemos o convite do velho-novo poeta, a fim de margearmos a literatura junto a esse cão, em busca de novos começos e reencontros, ao som de uma velha-nova voz de Moçambique, que se pretende, sobretudo, como a voz de um mundo inteiro.
É chegada a hora de o Brasil descobrir para que e para quem escreve Luís Carlos Patraquim.
Rio de Janeiro, 6 de janeiro de 2017.
Cíntia Machado de Campos Almeida – Doutora em Letras Vernáculas, especialidade em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, pela Faculdade de Letras da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro)