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Avisos à navegação, por Carmen Tindó Secco

Os saberes de uma época são formados por teias de representações sociais e culturais, incluindo os discursos literários. São essas malhas de conhecimentos e memórias que a escrita de Ana Paula Tavares revisita e tece com lucidez e poesia. Suas crônicas são curtas, densas e profundamente políticas.  A escritora – também exímia poeta – maneja as palavras com labor e arte, construindo sentidos que transformam seu discurso em viagem por dentro do tempo e da linguagem. Viagem que se converte em autoconhecimento, em regresso à própria casa, à terra natal, ao âmago de si e do poético. Ler Ana Paula é penetrar nos labirintos da história, repensando perdas, dores, tradições. É mergulhar no íntimo dos vocábulos que brilham com olhos de sabedoria e prazer.

As crônicas de Um rio preso nas mãos, de Ana Paula Tavares, questionam aspectos do presente angolano, ao mesmo tempo que reinventam tradições silenciadas de povos de Angola. Em sua escrita, sangram palavras, medos, silêncios, o livro do tempo em seus deveres e haveres. Desse modo, as pontas de vários contextos históricos vão-se enlaçando. Na crônica “As Mães”, por exemplo, a voz enunciadora, em diálogo intertextual com o poema do angolano Viriato da Cruz usado como epígrafe, lembra os sofrimentos das mães de ontem e de hoje em Angola.

A autora escava camadas de letras para encontrar uma “nova carta”, reveladora de outras lembranças e estórias. Fantasmas assombram a escrita, fazendo aflorarem do passado tradições esquecidas. Há a recordação de um tempo sem fronteiras, que excitava intercâmbios entre os povos, bem como a interpenetração de línguas e linguagens. Tudo isso, porém, ficou no outrora, na argila e na água com que se moldavam o barro e a vida. Hoje, “ao lado da fronteira alinhou-se a palavra ameaça (…). Cercaram o paraíso de muros altos e arame”.

Na crônica “O Livro do Deve e do Haver”, é elaborada, de modo crítico, uma contabilidade da história do colonialismo português, das dívidas cobradas à terra angolana. Aqui, é lançado um olhar questionador e defendida a urgente construção de uma solidariedade orgânica, capaz de romper com a contabilidade dos lucros que só beneficiava os algozes de uma terra que desejava hastear sua independência. Das contas, dos diários, a voz enunciadora passa aos poemas que prepararam e alimentaram a luta revolucionária. Bons tempos esses que não deveriam ser esquecidos! Contudo, mudanças ocorreram e a utopia da liberdade foi maculada por políticas e economias neocoloniais.

É melancólico esse balanço crítico, após tantos anos de guerras e sangue derramado! Esgarçam-se não apenas as economias e as sociedades africanas, mas, principalmente, as identidades. A contrapelo dessa história de estagnação, implosão e declínio econômico-cultural, as crônicas de Um rio preso nas mãos, muitas das quais originalmente publicadas, em 2014 e 2015, no Rede Angola[1], focalizam, em sua maioria, diversas tradições angolanas esquecidas, como, por exemplo, a das mulheres que vestiam panos, cumpriam rituais, cozinhavam com óleo de palma, bordavam colares de miçangas e modelavam o barro vermelho, ao mesmo tempo que recordavam os lemas revolucionários, quando eram ainda jovens e esperançosas da edificação de uma Angola livre e solidária. O diálogo com a liberdade, com a terra, com a comunhão entre os homens é rememorado, manifestando saudade dessa época.

Na crônica “Desafiar o Silêncio”, a cronista aborda a função social das mulheres no mundo atual e cobra das independências dos países africanos a urgência de “remover moléstias antigas, abrir escolas”. Defende que são as mulheres – tanto as dos espaços rurais, como as das cidades atuais – as conhecedoras da diversidade de seus papéis na família, no trabalho, no cotidiano das relações de vizinhança e na sociedade.

Ana Paula repensa o desempenho das mulheres em algumas tradições angolanas; acaba por refletir, também, metapoeticamente, sobre a função da palavra e da arte. Num corpóreo silêncio, sua escrita urde, crítica e poeticamente, sua trama com consciência e mel; estilhaça medos; “fala” pelo outro que toca a vida, muitas vezes, sem ter a real percepção dela. Medos, os mais variados, se repetem no mundo contemporâneo, em obras de poetas e romancistas. Por isso, é mister, cada vez mais, trabalhar a palavra, envolvê-la em tecidos finos, misturá-la a sons rústicos e estrepitosos, a vozes profundas que mergulhem no mistério das almas, como se estivessem sobre aveludados divãs de psicanalistas, magos ou visionários.

Na crônica “Humidade”, a voz poética enunciadora é a grande tecelã: a aranha do deserto a tecer a teia da vida, do tempo e da linguagem. Esse fluir, entretanto, se  encontra preso como o rio nas mãos gretadas e em sangue da mulher antiga. Mãos que, todavia, também guardam a gota preciosa do cacimbo, orvalho de esperança: água da palavra, poesia.

Em “O Medo”, a voz narradora, ao final, adverte: “Não tenho soluções, só pedidos: ajudem a parar esta dor de cacimbo, deixem passar as vozes para podermos ver claro no meio das sombras e partilhar agasalho neste cacimbo de frio”. Medo, cacimbo, sombras – recorrentes marcas metafóricas de uma escrita que persegue a luz para não se perder na névoa social e política que embaça a liberdade. Nas entrelinhas, fica uma probabilidade de que ainda seja tempo de escrever sonhos e cultivar desejos.

As crônicas de Ana Paula Tavares desenham paisagens e pessoas. “A Cor das Vozes” faz homenagem a Ivone Ralha, senhora das mãos de seda, da escrita das pedras, da areia, do amor. Há narrativas, como “A Voz da Avó” ou “As Formigas”,  que recriam provérbios nyanecas. Há outras que demonstram que a ideia de liberdade não se afigura de forma igual para todos. Há, ainda, as que relembram o fogo sagrado, a panela grande, a madeira que arde, o cheiro de flor, a máscara de Mwana Puó, a voz firme da avó a contar estórias encantadas. Tudo isso está presente na arqueologia da vida das crônicas de Ana Paula, cuja escrita vai acendendo, no avesso das palavras, pequenos lumes que funcionam como “avisos à navegação”, como alertas contra a violência e a ganância que destroem os sonhos.

[1] Rede Angola: Portal online de jornalismo independente, cujos objetivos eram a informação, o entretenimento, a divulgação não só da cultura e do pensamento angolano, mas também de acontecimentos sociais, políticos, econômicos, culturais do mundo. Idealizado em 2012 por Sérgio Guerra, Lara Longle, Saymon Nascimento, o Rede Angola foi gerido por esse trio, mas teve curta existência, sendo fechado no final de maio de 2017. Diversos artistas, músicos, poetas, escritores – Aline Frazão, José Eduardo Agualusa, Ana Paula Tavares, Ivone Ralha etc. – participaram desse portal, publicando, na seção “Cultura”, crônicas, ilustrações, etc. Disponível em: <http://www.redeangola.info/palavras-deserto/> Acesso em: 05 mar 2019.

Rio de Janeiro, 05 de março de 2019.

Carmen Lucia Tindó Secco
Profa. Titular de Literaturas Africanas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ
Pesquisadora do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico)
e da FAPERJ (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro)

Citar como:

O ARTIGO:
SECCO, Carmen L. T. “Avisos à navegação”. Prefácio. In: TAVARES, Ana Paula. Um rio preso nas mãos – Crônicas. São Paulo: Kapulana, 2019. [Vozes da África] Disponível em: <https://www.kapulana.com.br/avisos-a-navegacao-por-carmen-tindo-secco/>

O LIVRO:
TAVARES, Ana Paula. Um rio preso nas mãos – Crônicas. São Paulo: Kapulana, 2019. [Vozes da África]